Construindo uma espiritualidade pós-cristã
Em meu texto anterior falei que uma vida pós-cristã deve abandonar as figuras do Diabo e do Filho Pródigo. Uma espiritualidade que se coloque após o cristianismo deveria também fazer o mesmo, não encarnando uma pura inversão do mesmo (o Diabo) ou uma saída que conserva de forma não-refletida seu conteúdo substancial (velado ou secularizado). Obviamente esta não é uma tarefa fácil, pois todo gesto que busca transvalorar nosso contexto civilizacional deve necessariamente lidar com os próprios mecanismos de transvaloração que foram operados pelo cristianismo para compor sua narrativa de triunfo, qual de antemão criou essas figuras das quais precisamos nos afastar.
É notável que o judaísmo, enquanto religião que antecede o Cristianismo (e que continua a se desenvolver historicamente de forma independente do mesmo após seu nascimento), geralmente é visto pelos cristãos como a manifestação de uma dessas figuras: ele pode ser visto como o Filho Pródigo para os evangélicos sionistas ou como a Sinagoga de Satanás (ou “deicidas”) para o católico tradicionalista. Felizmente, o Judaísmo continua firme, vencendo de forma sistemática o assédio milenar da maior religião do mundo em número de adeptos.
Mas não sou judeu e não pertenço a uma comunidade que antecedeu ao cristianismo e sobreviveu a ele de forma historicamente contínua. Também não faço parte de religiões que se consolidaram em partes do mundo onde o assédio cristão não foi tão massivo e destrutivo para as comunidades religiosas nativas (no sentido de torná-las extintas).
Sou um politeísta contemporâneo, com absoluta e total consciência que minha religião não pode se reduzir a um passado que não pode retornar. Os Deuses que venero já foram venerados em estruturas hieráticas que hoje estão mortas, sendo meu culto não uma religiosidade pré-cristã ou extra-cristã (como o judaísmo, o budismo ou o hinduísmo) mas necessariamente pós-cristã.
Acredito que existem ao menos duas religiões bastante jovens que se esforçam (com diferentes níveis de sucesso) em construir uma espiritualidade após o cristianismo: a Umbanda e a Thelema. Não sou praticante de nenhuma delas, mas elas tem me ensinado alguns caminhos para imaginar a construção de uma espiritualidade que possa ter a capacidade de inaugurar um novo trajeto sem ignorar a materialidade do chão que será cortado por ele.
Não se trata simplesmente de sincretismos e reinvenções do imaginário legado, mas a capacidade de implodir a narrativa supersessionista cristã (originalmente utilizada contra o judaísmo, mas generalizada contra todas as tradições por Justino Mártir). Elas nos possibilitam tornar o cristianismo mais um capítulo (e não a abóboda e selo da revelação), neutralizar o discurso da ab-rogação dos Deuses antigos e articular o legado recebido em uma direção completamente outra (ou um novo salto pneumático-noético para deixar os voegelianos irritados). Sua eficácia simbólica é provada principalmente pelos efeitos que culturalmente conseguem concretizar, que é notório tendo em vista que são religiões extremamente recentes.
O Novo Aeon (da Thelema) ou a Era do Espírito (presente na bandeira de muitas Umbandas) pode ser nada mais que o florescimento de muitos Aeons e de muitos Espíritos Santos. Mesmo conscientes de todos os problemas, descaminhos, meia-voltas e pontas-soltas que tais tradições possuem (como qualquer uma em sua mocidade), elas podem nos animar a gestar muitas outras crianças.