Como distinguir um poeta inspirado de um charlatão? O poeta inspirado reconhece a relatividade de suas palavras; ele compreende que o discurso das Musas que anima sua voz ou sua pena é impregnado de sangue e suor. De uma perspectiva moderna, ele tem consciência de que a Divindade não apenas se expressa através dele, mas sua própria expressão estabelece um universo de mediações, condições transcendentais de inteligibilidade e comunicabilidade, entre ele e a Divindade. Ele não age como um simples intermediário ou Médium, mas sim como um elo dentro de uma cadeia de mediações, influenciadas por fatores que vão desde o nascimento até as condições históricas gerais moldadas pelo avanço do Espírito na História.
Em resumo, o poeta reconhece, tal como Hesíodo já o fez, que seu discurso é formado por falsidades sob a forma de verdades e verdades sob a forma de falsidades.
Seria isso um ultraje à Verdade? Pelo contrário! O poeta-profeta entende que a Verdade divina não pode ser completamente contida por nenhuma fórmula discursiva; aliás, para usar um termo proclino: nosso discurso sobre os Deuses sempre se manifesta através de uma racionalidade "bastarda".
Os oráculos há muito nos ensinaram que a ambiguidade, quando consciente e honesta, carrega mais significado do que um discurso claro e preciso. A Revelação divina não é o momento em que todas as dúvidas terrenas são resolvidas por uma resposta decisiva das divindades; é, na verdade, a criação de um novo patamar de questionamentos.
Bem antes da era da "pós-verdade", o Mythos já dava voz à "pós-mentira".
E o charlatão? Ele profere somente falsidades sob a máscara de verdades, fingindo que suas palavras não envolvem sangue e suor, amaldiçoando sua própria criatividade em nome de uma humildade presunçosa, colocando-se como um mero "canal" impessoal entre o Divino e o Humano. Sua busca pela pureza discursiva revela sua corrupção e a essência de sua desonestidade.
O poeta-profeta submete-se a um teste, posicionando-se ao lado de outras narrativas que compõem um mosaico de formas simultâneas pelas quais o divino escolhe se manifestar. Esse mosaico permanece aberto para debate e constante recriação, um presente sagrado (seja reconhecido ou não) das tradições orais em geral.
Se aceitarmos que o poeta-profeta é o guardião da Revelação exatamente devido à consciência da limitação de sua capacidade de cumprir plenamente sua missão, então nos libertamos do poeta-gênio romântico que se eleva acima dos ataques lançados por outros seres humanos. Deve haver a liberdade de um Heráclito para rejeitar até mesmo um Homero, sem peso na consciência.
Mesmo com a invenção da escrita, esse impulso de transmitir falsidades carregadas de verdades divinas não foi extinto por completo. No mundo fantástico dos apócrifos e pseudo-epígrafes, Enoque inspirou as epístolas de Pedro e Judas, Sócrates transmitiu os segredos da Alquimia no Mundo Islâmico através de Jabir e Dionísio de Aeropagita ensinou teologia neoplatônica aos cristãos. Muito antes da indústria literária espírita reconhecer o valor do ghostwriter, os espíritos já influenciavam as palavras dos vivos.
Mesmo quando exploramos tradições com um cânone mais definido, o apócrifo não surge como uma simples contrapartida negativa do livro oficial; ao contrário, frequentemente serve como campo de experimentação hierofânica, no qual emergem muitos elementos que constituem as "doutrinas não-escritas", preenchendo as lacunas da leitura oficial com conhecimento não explicitado no material canônico.
Hoje, o surgimento secular de gêneros como a theory-fiction na contemporaneidade nos demonstra que esse impulso não apenas sobrevive, mas é fundamental e essencial para um pensamento mais completo, capaz de explorar seus limites mais obscuros.
No contexto religioso, a incapacidade de transmitir honestamente verdades enganosas e falsidades verdadeiras tem nos confinado à simples mentira, que é a repetição de antigas verdades enganosas desprovidas da vitalidade teofânica que uma vez sustentaram.
O contato constante com os Deuses deve nos conduzir novamente para a aquisição dos “olhos de fogo”. A prática religiosa precisa colocar óleo novo nas antigas engrenagens discursivas que a orienta.
Claramente, revitalizar essa tradição exige uma responsabilidade singular: um cuidado e respeito absoluto pelo aspecto hierofânico que se deseja transmitir, bem como a escolha criteriosa das imagens ou "falsidades" que melhor servem como veículo para aquilo que é essencialmente verdadeiro. Dada nossa condição atual, é imperativo que exista, como propôs Platão (ainda que não da mesma forma ou com o mesmo princípio), uma Ética da Mitogonia, permitindo a promoção de falsidades de maneira honesta e verdadeira, ou seja, a promoção das falsidades que melhor transmitem aquilo que é fundamentalmente verdadeiro. Como toda Engenharia, a Teologia deve ser feita com responsabilidade e cuidado.